quarta-feira, 7 de abril de 2010

A pedra


AVISO: O Blogspot.com cansou de não se responsabilizar pela leitura e, atualmente, simplesmente não se importa.

Se algum dia me fosse concedido a dádiva de poder mudar qualquer coisa que considerasse como um fardo na vida, certamente seria o de ser o narrador onisciente. Longe de mim parecer ter má-vontade ao descrever minhas histórias. Mas entendam: defrontar com as mais absurdas e inverossímeis situações acaba desatinando qualquer ser vivo. Aliás, pertencer a um plano literário é relativizar minha existência: falo, penso, conto histórias, mas estou vivo? Afora isso, minha presença onisciente é o que vitaliza, de fato, as personagens de terceira pessoa. Antes de minhas observações, são apenas chumaços de inconsciência, uma neblina com um discurso inteligível para humanóides. E é minha função, portanto, converter essa comunicação - tão abstrata - em um canal mais acessível, como a língua.
O que mais me dói, porém, é jamais receber a real empatia do leitor acerca do meu tratamento com as personagens: ele jamais saberá - talvez chegue a saber, mas dificilmente valorizará - o quanto as cultivei, estudei e as guardei. E o quanto me dói a cabeça por estar em cima do muro que me separa entre o verossímil e o inverossímil.

Pois bem, sei que minhas procrastinações te irritam, mas como nunca manifesto minhas observações pessoais, achei que um pouco de desabafo não faria mal a ninguém. Perdoem a catarse e comecemos, leitor incompreensível:

Estava eu, sob a sombra de uma árvore, regado a mansidade e água fresca, quando - num ímpeto - um certo indivíduo velho e rancoroso perfura cenário literário adentro, de modo a rebater uma vastidão de letras e palavras desconexas diretamente na minha cara - soube, nesse instante, que seria mais uma daquelas cenas.
O velho, que comecei a simpatizar (talvez pela minha natural compaixão) aproximava-se de uma, igualmente velha, pedra.

- Boa tarde, minha cara. - dizia com certa dificuldade à pedra - Dias ensolarados estes, ein? Estão de rachar - e voltava a olhar, com alguma graça e malícia, para a rocha.

A pedra parava. O velho olhava com certa confusão entre o incômodo e a curisiodade. Resolveu se sentar.

- Sabe... agora que cheguei nesta etapa, percebo como é engraçado essa coisa de vida. No começo a gente chora, não quer participar, é obrigado a usar uns panos, sabe - olhava de volta para a pedra - Você não teve isso, não foi? - voltava a olhar, como se esperasse uma resposta.

A pedra rochava. O velho, então, continuou:

- Pois bem, daí surge sua mãe e lhe ensina umas coisas e lhe dá colo, e aí você sente que tudo pode ficar (e até fica) mais gostoso - olhava meio pra cima - e aí é a fase que você começa a aflorar o que depois vai acreditar se chamar "imaginação"... você acredita nisso? É engraçado como a língua pode tirar certas fortunas de uma criança. Você imagina que um menino tem um mundo todinho paralelo a este que conhecemos e posteriormente irão fazê-lo chamar isto de "uma invenção sua"? Eu, pelo menos, nunca acreditei que uma coisa que julgasse ser real não o seria por não pertencer a uma mente coletiva - falava com um tom na voz que beirava a brutalidade.

A rocha só pedrava, ainda assim.
O velho suspirava nostalgicamente e se deitava sobre a grama.

- Amanheceu rápido, não? - esperou uma resposta novamente, mas voltou a falar rapidamente - Digo, não tenho nada contra o dia, contudo gostaria que a noite demorasse mais - tossia - Isso me faz pensar na vida também. Tantas vezes que pedi uma tréguazinha ao tempo, sempre pedi "calma lá com a pressa". Só tenho uma vida pra viver e com tantas outras vidas. Vinte e quatro horas é tão pouco tempo pra um dia e, basicamente, nossa vida consiste unicamente neste dia - retornava o olhar cansado para a pedra - mas ele me respondia igualzinho a você.

A rocha rachava.

- Foi quando me tornei ranzinza. Não sei se me tornei assim reclamão por não conquistar plenamente meus objetivos ou se do contrário: não conquistei minhas ambições por ter me tornado ranzinza - franzia a testa, de modo a acentuar suas rugas; sua expressão havia conseguido se tornar ainda mais deprimente - Foi quando, então, me defendi do tempo. Entendi que não devia ter sentimento por alguém se não quisesse padecer ao ver esse objeto do meu afeto fenecer. Eu sabia que teria sentimento demais e me perguntei "se o tempo, que age diretamente com as pessoas, se mantém sempre vivo e com grande poderio sem necessariamente ser bom às pessoas... por que eu tenho de confiar... no afeto?"
O sol, à medida que ia descendo, incidia diretamente na pedra, fazendo-a rachar mais. Se alguém, além da pedra e de mim - que estou acostumado com esse tipo de diálogo de personagem - estivessem ouvindo aquele velho, certamente morreria antes dele.

- E então aprendi a lidar com a vida. Peguei-a de jeito, sabe. Fui duro como você. Não sei dizer se fui racional. Essa palavra é, em alguns casos, tão destrutiva assim como "imaginação" é pra mim: afinal, como defini-la se a gente tem referenciais que se divergem em relação ao que consideramos sensatez? - pensava - Como falava: trabalhei, dei duro. Deixei de lado um pouco novas oportunidades e pessoas, mas cumpri meu papel... acho.

O velho se acomodava mais na grama e falava com orgulho:

- Foi uma vida extenuante, mas lucrativa. E não é que eu goste de dinheiro, pode olhar pra mim e notar que sou simples - e se exibia em frente à pedra - mas precisava de um subterfúgio pra evitar o tempo. Tem gente que chama isso de "ideologia" - tosse forte e galantemente pede desculpas - Vá lá que seja. Eu cumpri minha missão. Fui bem nos negócios, tive uma vida estimuladora para os outros.

A pedra rachava mais fundo. Começava a estalar. O velho se assusta, mas, ainda absorto em sua linha de raciocínio, torna a voltar a falar:

- O que faz me sentir assim, meio vazio, meio sem guia agora, eu não sei. Temo ser a volta do tempo a atacar contra mim, temo ser essa velhice, mas acho que temo ainda mais não ser nada disso.

O sol estava a pino. A pedra estalava - rachava rachava e rachava - até que vários pedregulhos foram atirados, ricocheteados e estatelados no chão. Uma enorme cratera abriu-se na pedra que, com muito desengonço e numa voz grave e quase inteligível - juro, esta cena que é exdrúxula até mesmo para mim, narrador, que já deveria estar acostumado com este tipo de coisa - balbuciou:

- Que inveja de você que ao menos teve chance. Quem me dera um dia poder amar.

"Quem me dera um dia poder amar" - exatamente assim, sem saber se "dia" é objeto direto ou oração intercalada - eram as ondas sonoras que tinham a exata vibração que poderiam rachar a cabeça do velho.
E uma vez que ele não pôde falar, a pedra parecia ter roubado as suas cordas vocais e o deixou estático, duro, como se naquela específica conversa, só um pudesse falar e só um podia ser pedra - embora fosse difícil eleger o mais apto para tal cargo.

- Quem me dera um dia poder amar! Quem me dera um dia poder amar! Quemmederaumdiapoderamar!... - repetia a frase disparadamente uma atrás da outra

O sol já começava a baixar e a querida noite do pobre ancião estava por vir. Ele, entretanto, com o olhar completamente tomado pela pedra, a via expressar-se, com todo sentimento que podia, "Quem me dera um dia poder amar" e franzia seu rosto, enrugava-o, mas não entendia.
A pedra não tinha mais sol e não racharia, por enquanto - mas sabia que alguém iria fazê-lo em seu lugar.

E este foi todo o relato que tive. Não quis continuar naquele ambiente que me parecia agora inóspito e, então, voltei para cima do meu muro que separa o literário do não-literário. Não deveria ter me assustado, mas confesso que essa bizarrice me provocou medo - e, dado minha condição de personagem, tive até medo de ter esse medo.
Saí de lá e prefiro, por um instante, esvair minha confusa existência porque tive sensações que diria serem vagas e esquisitas demais para mim... mas confesso que mais incompreensível ainda é uma pedra "pedrar" pra sempre.