quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Com açúcar, com Moleskini

Toma, meu querido, esse texto é todo pra você. Pode não ser nenhuma ida ao moinho ou mesmo como sentir o orvalho da manhã sob a inexplicável visão miraculosa de cães se engalfinhando numa celebração tórrida e afável do amor. Mas é maior que isso, coração. É um prato de paciência encardida que, por alguns minutos, decidi esterilizar em algumas páginas de um, então protegido, Moleskini. É uma caixa de Pandora às avessas. É uma vastidão da subjetividade das palavras que, com esmero, te aprofundam num bando de palavras preguiçosas - a característica pecaminosa da preguiça surgiu por conta de sua vulgaridade em querer se deleitar com todos os corpos que puder encontrar, portanto não me julguem pela carne fraca - e de credibilidade questionável.

Todo pra você, querida lobster, esse nosso refúgio que é também um limbo da nossa terceira dimensão do sonho, o globo eclipsado que existe mas não está. (como explicar o verbo to be com você, seu lindinho?) O fosso do início da matéria e também da não-matéria e que, ainda que perdure esse mesmo buraco de existência em cada indivíduo em suas relações interpessoais - e é, portanto, um dos responsáveis por tanta falha de comunicação entre as pessoas - ainda assim eu te dou esse texto; nosso buraco mais embaixo, a pequena ultrapassagem na barreira de compreensão entre dois seres.
E eu dedico, com todos os suspiros celestiais, para esse caloroso amor desejado por Boris Grushenko que engloba o intelectual, espiritual e, o tão justo, sensual.

Toma, toma, toma. Toma logo essa caprichosa matriz genérica de texto que, após acordar certa manhã de sonhos intranquilos, fiz pra você. Toma, que é pra nunca mais duvidarem da minha sensibilidade no amor após fixar o olhar num ponto do quarto e muito franzir a testa.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Enxaquecas, irrelevâncias e mangas

Tudo começa com certos dias de uma específica malemolência e enxaqueca (queixa, inclusive, quase nunca extinta em minha vida).
Qual a minha, portanto? Protelar mais um trabalho para depois. Ok, isso eu consigo. Tirar certos proveitos da fraqueza, como um afaguinho extra de próximos: ai, como dói, como dói, fica aqui pertinho, por favor? Ok, isso eu também consigo.

Dói tanto, aliás, que até intercambiar do conto pra crônica — gênero que, por minha discrição e falta de vontade de conversar diretamente com as pessoas, deixei cair no meu ostracismo particular — tornou-se meio sedutor.
Mas, justo agora, o maior de todos os conselhos (exceto quando dado por Chico Buarque) eu não consigo segui-lo à via de regra: já havia tentado dormir e, ainda assim, não passou.

Sucederam-se, então, horas e horas feitas a esses pequenos golpes de solidão barthianos (notem como minhas expressões estão sendo apelativas para executarem, com sucesso, o segundo exemplo de aproveitamento de fraqueza, no qual vocês, em um honroso e nobre gesto altruísta do dia, podem ajudar a constituí-lo), até que... foi me acontecendo. Eu, que já tenho a cabeça compromissada com um engajamento sério e promissor na filantropia com outros mundos, planos e dimensões, fiquei horas recebendo imagens sem, no entanto, processá-las devidamente nos confins do meu lobo occipital – que tão antes e com tão esforço, ele fazia.

Foi aí que surgiu, simultaneamente com a fraca voz, a falta lexical, as orações subordinadas sem as suas principais (“... que eram lânguidos esses abraços de frescor parisiense”, “... que comia com tanta veracidade, enquanto lembrava do professor”), perpassando até então por aleatórios pensamentos que, se não tinham sentido semântico e/ou sintático, eram ainda inocentes. Foi quando beirar a superfície do pensamento não foi suficiente. Eu sabia, quase podia sentir a construção de “A bunda, que engraçada...”. Nem a linha de raciocínio mais leviana passa incólume à experiência de um indivíduo. Há alguma profundidade pueril nas idéias leves (que provavelmente são apreendidas em uma dessas viagens filantrópicas transcendentais – e que não se entendem bem na volta, porém).
Foi assim, quando o organismo, sem respeito algum a mim e ao meu enjôo da enxaqueca, resolve atestar fome.

Quer iogurte, querida? Não, mãe, muito doce. Mas você também não quer jantar. Não quero comida de verdade, nem pão, nem nada salgado; é algo meio gelado, acho. Ah, então tem sorvete, querida. Não, não, é muito doce também. Então, o quê? Ah, tem manga? Sim, é isso! – dizia eu, após um perfeito e exato fluxo de consciência. Mas você acabou de comer, lindinha, você só está comendo isso. Que o seja, traz, por favor.

Minha mãe, pensando, ergue os olhos para cima e para esquerda (e assim sei que não mente, mas está a lembrar de algo, acredito, realmente relevante nesse momento decisório sobre o rumo que minhas posteriores horas de pequenos golpes de solidão irão tomar)

– Mas, meu amor, eu não sei cortar daquele jeito.

Entenda “aquele jeito” o jeito que a moça que trabalha aqui em casa sabia. E ah, eu também não sabia. Mas, e agora? Mesmo os pensamentos levianos podem se tornar ideias fixas – e não tem nada de inocente na profundidade das consequências de uma ideia assim, certo?
Então não quis. Se não era cortado daquele jeito, então tinha de comê-la aceitando o ritual de ter de se melar e passar pela casca e pelo fiapo que engloba o “chupar uma manga” (além do fato de, semiologicamente falando, eu odiar esse verbo e ter de ser obrigada a usá-lo, pois não poderia negar o processo)

E fui ficando assim, solta, a condicionar a melhora de cada tinir da minha cabeça à essas mangas e irrelevâncias. Mas é inútil dormir, afinal elas não passam.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Strifon e a outra saúva

- Você não gostaria de falar sobre isso? – batias as antenas, enquanto interceptava a outra saúva que revezava seu ato ora de chafurdar em terras vermelhas lameadas literais, ora nas universais – nos confins dos campos abstratos que seu olhar, tão absorto como estava, alcançava.

- Não, não quero. – respondia a outra, de súbito.

Strifon (numa melhor tradução do dialeto sauvês) inquietava-se, num frêmito de preocupação exaltados entre uma batida e outra de sua antena, preocupava-se:

- Não é perigoso estar aí? – e esperava resposta da saúva – o que te aconteceu?

Acontece que a outra saúva não respondia. Dentre sua imersão, tornava-se ainda mais rubra com toda aquela terra lameada. Em movimentos desconcertantes, contudo, tornou a falar:

- Você está machucado, Strifon?

Strifon voltou a olhar em torno de si, um de seus pares de pernas estava machucado, mas como ainda conseguia se locomover bem, quase não o tinha notado. Sua carapaça de quitina que a revestia também já não estava das melhores. Não lembrava, entretanto, o que o teria causado isso.

- Engraçado te entender agora, Strifon – exuberava-se a saúva – ainda há pouco, acreditei estar com problemas nas antenas.

- E o que te aconteceu, por fim? Você não quer mesmo falar sobre o que estávamos discutindo de início?

- Não, não quero. – irritava-se a saúva – Sabe, ali, naquele lugar – e apontava a uma determinada área à esquerda – eu iria depositar fungo e matéria fecal para o novo sauveiro que planejava. Ainda não o fiz, porém, sinto alguma dor, tinha certeza que algo tinha acontecido às minhas antenas – olhava para Strifon com ternura – mas vejo estar bem.

- Você deveria ter jogado seu conteúdo lá. Por que não o fez?

- O sauveiro pode esperar, ele está pronto, o tenho em mente. Apenas ainda não o engendrei, de fato, não o finalizei – olhava e perscrutava intimamente Strifon, que havia criado uma densa empatia por essa parda formiga que também a encarava – estou preocupado com você, Tri.

Strifon, no entanto, preferia desvirtuar o assunto:

- Podemos continuar, por fim, onde estávamos?

- Sim, sim. – e batia as antenas – foi quando veio a chuva, Tri. E eu, antes um sujeito clivado de Lacan, sabe como é, não resisti: decepei e desmembrei-me todo. Você não sabe como é, foi terrível ter de testemunhar esse momento ontológico – a gente nunca acha que acontece com a gente – e toda uma amálgama de discursos de saúna destrincharam-se sós, em total plenitude delas e, então, suspenderam-se no ar. E nós, que somos esse emaranhado cheio de nós de milhares de vozes, e eu aqui, afundando-me enquanto desfruto esse único e genuíno discurso do qual me valho e preciso agora. – revolvia todo seu abdômen de lama enquanto falava, num gesto que beirava um ato infantil – Se você voltar para o local onde seria o novo sauveiro, Tri, irá – ou, ao menos, se puder considerar uma faceta de mim também um meu “eu” – me encontrar lá. Em um novo discurso, entretanto.

Strifon olhava-o incrédulo. Em qualquer dia, não entenderia asneiras alheias de saúva alguma. Mas hoje, naquele particular olhar que havia recebido, entendia. Em um campo que transgredia a objetividade, é verdade. Mas entendia.

- Estou curioso para a finalização do seu sauveiro. Mas te compreendo.

A outra saúva ignorava o que a parda lhe dizia.

- Estou preocupado com você, Tri.

- Não devia – e então, a essa altura, tinha acabado de decidir em também resvalar na terra umedecida – eu senti sua dor hoje, sabe, nas antenas. E, no entanto, elas estão intactas e justo o que aparentemente está machucado, em mim não me dói nem um pouco. – parava um pouco e pensava – Estamos bem, portanto?

- Estamos – suspirava a saúva e desenhava, por fim, algum sorriso numa face, até pouco tempo, inexpressiva. – Olha, eu não gosto de tanta subjetividade, mas quando surge esse vórtice dessa alguma coisa e, então, como é o meu caso, você depara com esse único discurso, em toda sua mais pura e quase cruel chafurdação, não tem nada mais forte que a subjetividade.

- Você sabia que subjetividade é o que salva as pessoas o tempo todo?

- Você acha?!

- Se você não acha, então volte com seu discurso que te espera no projeto do sauveiro.

- Eu, não. Não agora. Dizem que lama faz bem.

- Parou de chover, notou?* – dizia Strifon, e dessa vez era a vez dele de esboçar um sorriso, uma vez que detestava quando a terra ficava daquela forma. (e, particularmente, não gostava de vermelho no abdômen.)

- Na verdade, não.

Levantou-se, portanto, Strifon – que apresentava mais disposição que a outra saúva – e deu apoio a outra para subir em cima de si.

Escuta: vamos falar de coisas ternas e subjetivas, enquanto você procura todas as suas milhares de enunciações dispersas que lhe constituem. Estou curiosissímo pra ver esse novo sauveiro.

*and it rained all night