segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Strifon e a outra saúva

- Você não gostaria de falar sobre isso? – batias as antenas, enquanto interceptava a outra saúva que revezava seu ato ora de chafurdar em terras vermelhas lameadas literais, ora nas universais – nos confins dos campos abstratos que seu olhar, tão absorto como estava, alcançava.

- Não, não quero. – respondia a outra, de súbito.

Strifon (numa melhor tradução do dialeto sauvês) inquietava-se, num frêmito de preocupação exaltados entre uma batida e outra de sua antena, preocupava-se:

- Não é perigoso estar aí? – e esperava resposta da saúva – o que te aconteceu?

Acontece que a outra saúva não respondia. Dentre sua imersão, tornava-se ainda mais rubra com toda aquela terra lameada. Em movimentos desconcertantes, contudo, tornou a falar:

- Você está machucado, Strifon?

Strifon voltou a olhar em torno de si, um de seus pares de pernas estava machucado, mas como ainda conseguia se locomover bem, quase não o tinha notado. Sua carapaça de quitina que a revestia também já não estava das melhores. Não lembrava, entretanto, o que o teria causado isso.

- Engraçado te entender agora, Strifon – exuberava-se a saúva – ainda há pouco, acreditei estar com problemas nas antenas.

- E o que te aconteceu, por fim? Você não quer mesmo falar sobre o que estávamos discutindo de início?

- Não, não quero. – irritava-se a saúva – Sabe, ali, naquele lugar – e apontava a uma determinada área à esquerda – eu iria depositar fungo e matéria fecal para o novo sauveiro que planejava. Ainda não o fiz, porém, sinto alguma dor, tinha certeza que algo tinha acontecido às minhas antenas – olhava para Strifon com ternura – mas vejo estar bem.

- Você deveria ter jogado seu conteúdo lá. Por que não o fez?

- O sauveiro pode esperar, ele está pronto, o tenho em mente. Apenas ainda não o engendrei, de fato, não o finalizei – olhava e perscrutava intimamente Strifon, que havia criado uma densa empatia por essa parda formiga que também a encarava – estou preocupado com você, Tri.

Strifon, no entanto, preferia desvirtuar o assunto:

- Podemos continuar, por fim, onde estávamos?

- Sim, sim. – e batia as antenas – foi quando veio a chuva, Tri. E eu, antes um sujeito clivado de Lacan, sabe como é, não resisti: decepei e desmembrei-me todo. Você não sabe como é, foi terrível ter de testemunhar esse momento ontológico – a gente nunca acha que acontece com a gente – e toda uma amálgama de discursos de saúna destrincharam-se sós, em total plenitude delas e, então, suspenderam-se no ar. E nós, que somos esse emaranhado cheio de nós de milhares de vozes, e eu aqui, afundando-me enquanto desfruto esse único e genuíno discurso do qual me valho e preciso agora. – revolvia todo seu abdômen de lama enquanto falava, num gesto que beirava um ato infantil – Se você voltar para o local onde seria o novo sauveiro, Tri, irá – ou, ao menos, se puder considerar uma faceta de mim também um meu “eu” – me encontrar lá. Em um novo discurso, entretanto.

Strifon olhava-o incrédulo. Em qualquer dia, não entenderia asneiras alheias de saúva alguma. Mas hoje, naquele particular olhar que havia recebido, entendia. Em um campo que transgredia a objetividade, é verdade. Mas entendia.

- Estou curioso para a finalização do seu sauveiro. Mas te compreendo.

A outra saúva ignorava o que a parda lhe dizia.

- Estou preocupado com você, Tri.

- Não devia – e então, a essa altura, tinha acabado de decidir em também resvalar na terra umedecida – eu senti sua dor hoje, sabe, nas antenas. E, no entanto, elas estão intactas e justo o que aparentemente está machucado, em mim não me dói nem um pouco. – parava um pouco e pensava – Estamos bem, portanto?

- Estamos – suspirava a saúva e desenhava, por fim, algum sorriso numa face, até pouco tempo, inexpressiva. – Olha, eu não gosto de tanta subjetividade, mas quando surge esse vórtice dessa alguma coisa e, então, como é o meu caso, você depara com esse único discurso, em toda sua mais pura e quase cruel chafurdação, não tem nada mais forte que a subjetividade.

- Você sabia que subjetividade é o que salva as pessoas o tempo todo?

- Você acha?!

- Se você não acha, então volte com seu discurso que te espera no projeto do sauveiro.

- Eu, não. Não agora. Dizem que lama faz bem.

- Parou de chover, notou?* – dizia Strifon, e dessa vez era a vez dele de esboçar um sorriso, uma vez que detestava quando a terra ficava daquela forma. (e, particularmente, não gostava de vermelho no abdômen.)

- Na verdade, não.

Levantou-se, portanto, Strifon – que apresentava mais disposição que a outra saúva – e deu apoio a outra para subir em cima de si.

Escuta: vamos falar de coisas ternas e subjetivas, enquanto você procura todas as suas milhares de enunciações dispersas que lhe constituem. Estou curiosissímo pra ver esse novo sauveiro.

*and it rained all night

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